domingo, 8 de dezembro de 2013

"Killer Joe"


Depois de abrir a carreira com dois dos filmes mais influentes nos respectivos géneros ("The french connection" e "The exorcist"), o sempre controverso e belicoso William Friedkin provou o sabor da hubris quando o seu remake "Sorcerer" falhou nas bilheteiras e, como ele próprio admite na sua auto-biografia, como filme. A partir daí, a sua carreira entrou num declínio que o levou a fazer filmes perfeitamente dispensáveis durante as décadas de 80 e 90 (salvo "Living and dying in LA"). No entanto, o facto de ter sido esquecido levou-o a um renascimento artístico em 2006, com o excelente e perturbante "Bug", e 2011 trouxe-nos o seu melhor filme em anos, que leva a perturbação a níveis muito mais íntimos, crus e, digo-o pessoalmente e com a certeza de poder despertar diagnósticos de psicopatia, de diversão inesperada. "Killer Joe" é uma obra onde a presença e a disfuncionalidade e da demência parecem ser requisitos pré-criação das vidas dos personagens, e não há grande explicação para a sua existência; no entanto, a unidade familiar que faz funcionar uma trama base de um filme noir (a morte de um parente é planeada pela necessidade de resgatar o dinheiro de uma apólice de seguro de vida) escolheu para si mesma o outro lado da moralidade como casa, com um quintal pleno de más decisões e algum azar no jogo que a vida lhes deu. Esta parte da história serve apenas para aguçar a entrada do personagem homónimo do título do filme, um untuoso, pervertido e assustador Matthew McConaughey, que deita pela janela qualquer tipo de preconceitos que o espectador tenha sobre ele logo na primeira vez que surge de corpo inteiro: uma serpente batendo à porta, com o seu Stetson, as suas luvas e a atitude de Leviathan devorador de almas. O filme sobrevive da vitalidade da sua interpretação, pois a intriga é aquilo que é, e tem poucas reviravoltas. No entanto, a presença de Killer Joe Cooper, em cada cena, é o sinal de que algo de muito errado tem todas as hipóteses de acontecer, e normalmente acontece. Friedkin filma McConaughey da mesma forma que filmou o demónio Pasuzu em "The exorcist", com a mesma atracção pelo desdém daquilo que é correcto ou que possa haver de Bem. Numa família onde esse compasso é a música da sua existência (Thomas Haden Church, um pau mandado que assenta sempre sobre areias movediças; Emile Hirsch, com um complexo incestuoso latente e uma paleta de escolhas de vida dignas de um guaxinim cego; Gina Gershon, como a mulher fatalmente a quem fatalmente calha ser mulher para mal dos seus pecados e regozijo de Killer Joe), só Dottie, que Juno Temple desenha como a imprevisibilidade nesta mecânica de podridão e a única pessoa razoavelmente pura (e que por isso serve de justificação a actos medonhos), escapa praticamente sem mácula. Um mundo a preto e branco, e onde apenas parece existir isso.



Há filmes cujas limitações são facilmente esquecidas quando a realização as afina, e "Killer Joe" conta com um William Friedkin que no Texas profundo redescobre o seu talento que usou para filmar paisagens urbanas e casas assombradas dos subúrbios. O desenho da família que precisa de dinheiro é batido e esquecível, mas a interpretação de McConaughey e a intransigência de Friedkin em filmar violência e sexo com uma potência desinteressada fazem de "Killer Joe" um filme com deses de fabuloso elevadas. Este ano, ouvirão falar muitas vezes do ressurgimento de Matthew McConaughey. Não se deixem iludir: ele começa neste filme.