quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Elysium


A ficção científica é um género quase tão antigo quanto o próprio cinema (perguntem a Meliés), mas continua a ser visto como algo de menor ou pouco desenvolvido. É comum acusar obras do género como sendo apenas desfiles de efeitos visuais e naves e extraterretres e robôs e coisas que tais. Percebo a facilidade com que se trata todo o um género por esta bitola, mas não consigo deixar de vê-lo como um preconceito. É facilitismo e preguiça não passar para lá da ideia preconcebida, e se há muitas razões para não se gostar de um tipo de filme, acusá-lo de ser apenas "uma coisa que não faz pensar", como já me disseram, diz mais sobre o interlocutor do que sobre o próprio género. O que há mais no Cinema são filmes excelentes e complexos que envolvem o espaço, naves espaciais, extraterretres e efeitos visuais até fartar: "2001", "Solaris", "Blade Runner", "Alien", The day the earth stood still", "Close encounters of the third kind", "La jetee"... Dão para todos os gostos e todos os géneros, e se alguém se quiser chegar à frente e dizer que qualquer um destes é simplista, está perfeitamente à vontade para fazer figura de urso.


Há também algo comum a estes filmes que dei como exemplos: o mais recente tem mais de 25 anos. É um facto que embora os efeitos especiais tenham avançado nas últimas duas décadas, isso não correspondeu ao aumento de qualidade no género. Há excepções, ainda assim: Paul Verhoeven fez "Robocop", "Total Recall" e "Starship troopers", todos vistos, em maior ou menor grau, como clássicos de ficção científica; "Matrix" deu a origem a trilogia horrível, mas o primeiro continua a ser uma referência, embora a minha relação com a obra do Wachowsky é ambivalente, quanto muito. Há "Brazil", "Aliens", "Back to the future", mas quando mais nos aproximamos dos nossos dias, o número vai diminuindo. São raríssimos os "Eternal sunshine of the spotless mind" e "Donnie Darko". Há quatro anos, no entanto, no meio de outras pérolas interessantes, embora não excelentes, que começaram a saltirar dos filmes de orçamento mais modesto, surgiu um exemplar que chamou a atenção, e com razão. Pegando na clássica alegora de ficção cientifica dos "alienígenas" como espelho dos problemas da sociedade, criava um mundo de appartheid localizado num país onde não muito tempo antes uma segregação do género existira na realidade. Só que desta vez, os extraterrestres eram os proscritos. "District 9" revelou Neil Blomkampo como um daqueles realizadores que conseguia criar um mundo coerente, estruturado e cool com pouco orçamento, e que ainda assim conseguia ter uma história substantiva para contar. Não era necessariamente subtil, mas cada um com o seu estilo, e o de Blomkamp é bruto como tudo na denúncia social que veicula.



2013 marca o seu regresso com "Elysium", uma distopia futurista onde o que resta da Terra é uma paisagem destruída e caótica, e uma sociedade de pantanas onde o Homem é o predador do Homem. Os ricos já cá não moram e emigraram para Elysium, uma utopia em forma de estação espacial anelar no espaço. Um operário, Max da Costa (Matt Damon), fica doente e vê-se obrigado a chegar a esta estação, onde existem máquinas que curam e restauram tudo. O problema é que pelos padrões elíseos, ele não é cidadão, e a Secretária de Defesa Delacourt (Jodie Foster) tem uma política contra emigrantes particularmente rígida. Portanto, nada de subtilezas aqui: a guerra de classes social mantém-se nesse futuro não muito distante, onde os pobres são cada vez mais pobres, e a opulência dos ricos leva a que estes vejam os menos favorecidos como coisas, e não seres humanos. O Sistema de Saúde está completamente obliterado, as pessoas sujeitam-se a tudo por um emprego e as mínimas aspirações de vida estão vedadas a quem não tem dinheiro. A face do Estado são so robôs que patrulham o que resta do planeta, e oferecem apenas frieza e incompreensão pelas necesidades das pessoas, e mesmo características humanas como o sentido de humor. Este género de ficçao científica orgânica é aquilo que de melhor o filme tem para dar, porque permite uma identificação quase imediata com este mundo e deita para longe qualquer acusação de que a ficção científica tem muito pouco a dizer sobre o mundo das pessoas. Do vestuário utlizado à caótica e destruída urbanização, há algo que neste munto que também é nosso, e mesmo o luxo do Elysium dos mais abastados é reconhecível. Parece Beverly Hills, mas multiplicado. No entanto, nunca entramos suficientemente no mundo de Elysium para perceber exactamente quem são estas pessoas que aparentemente abanodnaram a sua humanidade no planeta Terra para, em troca, beberem champanhe à vontade num ambiente filtrado a Purel. Entrevemos o seu nojo a qualquer coisa que possa vir lá de baixo num personagem que é dono de uma multinacional e trabalha na Terra, mas para um lugar que é referido várias vezes como um sonho inatingível e um antro de gente má, o nosso deslumbre não acontece e a compreensão que possamos ter do modo de vida dos seus habitantes é quase nula. Há uma ténue intriga política, mas sem se entende muito bem a sua profundidade. Dá a ideia de que Blomkamp aposta naquilo que é bom, ou seja o design de produção, e passa ao lado de pormenores que poderiam enriquecer bem mais o seu mundo e a sua mensagem. O filme até nem é muito longo, marcando abaixo das duas horas, e podia-se muito bem substituir uma segunda metade de desilusão (já lá vamos) por substância que tornaria "Elysium" um filme excelente e realmente digno de nota.


Onde o filme é realmente bom é naquilo em que "District 9" também era: há, tecnologicamente, um mundo que foi pensado consistentemente e com criatividade, desde os diversos tipos de naves conforme as suas utilidades e ocupantes, equipamento militar, fabril, material robótico e a estação especial Elysium, desenhada pelo grande Syd Mead. Mesmo que uma parte maior se desenrole numa favela global a que chamamos Terra (e não é por acaso que todos os actores filme chamados a preenchê-la, à excepção de Matt Damon, sejam latinos: Alice Braga, Diego Luna, Wagner Moura...), o mundo de "Elysium" é palpável e estruturado, sendo que a estação especial em si, embora nunca nos apareça num detalhe milimétrico, surge como o símbolo de um paraíso em forma de estrela, longe na sua proximidade com os sonhos dos personagens. Embora isto preencha os espaços do filme, está é acometido de outros problemas para além do já referido: as cenas de acção que envolvam luta são mal filmadas (e não pode ser acaso que um dos editores de "Elysium" seja Lee Smith, o colaborador habitual de Christopher Nolan, outro realizador com um olho para a grande escala, mas pitosga no que toca à luta corpo corpo) e isto estraga quase por completo toda a componente de acção do filme. Não é que de, resto, haja má acção (Blmokamp demonstra saber, por exemplo, como tratar bólides espaciais e voadores, com classe e pinta), mas estraga a experiência de divertimento do filme de maneira irrecuperável. Saber filmar acção é, continua a ser, um dom que não está ao alcance de muitos. É pena, porque há um vilão odiável e há Matt Damon com exo esqueleto de robô Tinha tudo para pancada de meia-noite e nada disso se concretiza. Embora seja corajoso na apresentação de ideias políticos polémicos, os seus personagens têm densidade de seda: Matt Damon faz de um mexicano com um sonho, Alice Braga recorre, novamente, no papel de anjo em tempo de ruína e Shalto Copley é o mercenário alucinado e psicopata que gosta de crianças. É por isso que depois de construir o filme com interesse em questões sociais e políticas, a segunda parte é lançada como acção non stop, sem grande estilo, com muito flash e pouca recompensa emocional. O que é realmente um desperdício. Isso e não colocar Jason Bourne e o capitão Nascimento a varrer robôs.

Fica aquela sensação de que se teve aqui uma bela oportunidade de filmaço, e de repente, por uma qualquer razão (provavelmente querer misturar dois filmes e tê-lo feito da maneira errada) se passou ao lado. Não é que "Elysium" seja mau: é uma filme razoável, que cativa o espectador a segui-lo e com suficiente encanto visual para ainda assim atenuar os efeitos da má realização já referida. Fica, no entanto, a meio caminho dos campos elíseos, um pouco acima do caos