quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Life of Pi"


Não há muitas maneiras de abordar a espiritualidade no cinema. Na realidade, há apenas duas: ou se tem, ou não se tem. Na primeira, é-se honesto e sensível, e corre-se o risco de parecer ingénuo e sentimentalão  Na segunda, é-se duro, frio e pessimista, e corre-se o risco de ser louvado ao ponto do pindérico por Vasco Câmara. Entre estas duas áreas, alguns dos grandes mestres do cinema tentaram responder à principal pergunta que a espiritualidade (não falo de religião propositadamente) nos coloca: o que estamos aqui a fazer? Na verdade, é uma das questões mais importantes de toda a história da filosofia, e o cinema, como moderna arte narrativa por excelência, não podia fugir-lhe. É famosa a conversa silenciosa com Deus (ou que entidade seja) por Ingmar Bergman; Stanley Kubrick caminhou pelos confins da História e do Espaço à procura desse sentido na origem de tudo, e deve ter-se cruzado com Andrei Tarkovski, que também procurou o sentido na arte de Andrei Rublev. Woody Allen viu-se dividido entre as irmãs de Hanna, Martin Landau e até foi ao Inferno para procurar o Diabo. Bresson, Ferrara, Lars von Trier... No ano passado, Terrence Malick, um homem que tem perseguido o efémero com uma câmara de filmar praticamente desde que Sissy Spacek adquiriu a maioridade cinematográfica, trepou em 2011 a uma árvore só para nos mostrar que sem a orientação do espírito, o Homem está entregue à selva que é ele mesmo.


Nunca li o livro "Life of Pi", mas se for tão encantador e intrigante quanto a excelente adaptação cinematográfica que mereceu de Ang Lee, então tem direito a todos aqueles prémios enumerados na contra-capa! Ang Lee tem construído uma das mais interessantes carreiras cinematográficas do cinema recente, tendo atravessado praticamente todos os géneros cinematográficos, nunca recorrendo a atalhos, e quase sempre com sucesso. Mesmo quando se espalha ("Hulk), preenche esse falhanço com suficientes pormenores de interesse para revisitarmos outra vez o filme. Que outro realizador faria duas obras magníficas tão diferentes como "Crouching tiger, hidden dragon" e "Brokeback mountain"? Quase nenhum; e é precisamente esse talento todo o terreno que o tornou no realizador ideal ara adaptar a história de um rapaz indiano, Pi (diminutivo de Piscine) que se vê preso num barco com um oragontango, uma hiena, uma zebra e um tigre, depois de um naufrágio que matou a sua família. Não é fácil criar conflito dramático a partir de um cenário aparentemente tão inerte. No entanto, situações extremas de sobrevivência já nos deram belos filmes, como "Castaway". "Life of Pi" equilibra todos os problemas que vêm da condição de náufrago com a procura que Pi faz, desde criança, por Deus e por um sentido unificador da vida. O pai, um materialista, e a mãe, completamente espiritual, equilibram-se dentro de si, com vantagem para o lado materno. A experiência de Pi, à deriva no mar, é a metáfora precisa desse sentimento de incógnita em que estamos num oceano de dúvidas existenciais tão primárias quanto inegáveis. Mas no caso do filme, o que se discute não é tanto uma religião específica, mas sim a necessidade de acreditar, acima de tudo. Seja em deuses, seja na ciência, mas acreditar em algo. Sem isso, não se encontra qualquer motivação para avançar. Estar preso num barco com um tigre chamado Richard Parker é uma prova exagerada que força Pi a descobrir o que seja a motivá-lo a continuar, mas resulta: se um grande desafio, nunca nos podemos confrontar seriamente com aquilo que desejamos ou acreditamos. Fica também marcada a ideia de que a demanda espiritual é, no fundo, uma escolha narrativa. As mitologias e as religiões são a maneira como escolhemos explicar as nossas vidas de uma forma mais elegante. Existem histórias mitológicas que são, na verdade, poemas explicativos e descrevem as aventuras humanas da forma como gostamos de ver a nossa vida: algo transcendente. Um das diferenças entre a Ciência e a Religião reside neste preciso ponto: ou escolhemos contar uma histórias ou escolhemos os factos. O etéreo ou a secura da realidade. Ambas são mágicas, mas numa há revelação, e noutra o prazer de um mistério pendente.


Ang Lee faz parecer fácil um filme onde a quantidade de efeitos visuais utilizada empalideceria indivíduos menos zen. "Life of Pi" é um espantoso exercício visual, com pequenos momentos memoráveis (a sequência do naufrágio culmina com uma imagem, ao mesmo tempo trágica e bela, que deve ter feito James Cameron dar cabeçadas numa parede, de inveja), que assenta na soberba direcção de fotografia de Claudio Miranda. Tal como no seu trabalho anterior com David Fincher em "The curious case of Benjamin Button", Miranda executa o seu trabalho totalmente no mundo digital, ajustando e criando na pós-produção e o resultado é, tal como no filme mencionado, precisão de cor e sombra, e também um conjunto de imagens que não são nada fáceis de esquecer. Seria fácil, se o filme não tivesse um centro humano tão forte em Pi (uma prestação difícil, mas conseguida, do estreante Suraj Sharma, na fase de náufrago da história), deixarmo-nos absorver pelo espectáculo visual que Claudio Miranda e Ang Lee apresentam. A realização de Lee parece tão relaxada e segura de si que nem notamos na dificuldade de adaptação desta história. O realizador de Taiwan percebe que não adianta ter os pés na realidade: esta história presta-se ao voo da imaginação e ao tom de fábula, e é assim que constrói e apresenta a história. Pi é um homem contra os elementos, mas que não foge a maravilhar-se deles e com eles.Ao contrário da restrição emocional que povoa a obra de Lee, este filme é uma explosão constante de emoção, que serve bem a história. No fundo, o que Lee está a filmar é uma narrativa sobre as narrativas que contamos a nós mesmos. A delicada banda sonora de Mychael Danna serve esse propósito.


Embora inicialmente "Life of Pi" apresente a perspectiva de se transformar num exercício de ecumenismo religioso chato, é com facilidade que o espectador se apercebe que o tema principal do filme não está aí. O filme é sobre as narrativas que contamos a nós mesmos para continuarmos a boiar no oceano da vida. Da maneira como queremos interpretar a banalidade do quotidiano, transformando-a em sinais ou motivações. É sobre imaginação, não só a nossa, mas também a de Ang Lee, que constrói um belíssimo e permanente quadro em movimento. Um pouco como a vida que vamos desfiando todos os dias, portanto.


1 comentário:

  1. Orgulhosamente programei uma 'chamada' para este ótimo artigo no site agregador de conteúdo dos Blogueiros do Brasil (( http://omelhordos.blogueirosdobrasil.com/ )).

    Será publicado em 07/05/2013 , no decorrer do dia.

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    Abraços cordiais.

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