terça-feira, 24 de julho de 2012

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"Saving private Ryan", de Steven Spielberg

"Intouchables"



Intouchables" tornou-se num fenómeno europeu de bilheteira e popularidade, principalmente no seu país natal, França. Narra a história de um tetraplégico rico, que contrata um africano vindo dos subúrbios para ser o seu enfermeiro pessoal... ainda que a sua única qualificação profissional seja a de ser "arisco". Pelos murais de Facebook, os louvores não param, e há um consenso geral de que temos aqui obra.Obviamente, tinha de ver.



Compreende-se, de facto, o encanto da obra. É um filme feel good, onde os dramas que existem são aflorados ao mínimo, e que lança a lição sempre reconfortante de que tudo é possível... mesmo um chico esperto pobretanas ensinar umas lições a arrogantes ricos. É uma noção simplista, mas o filme transforma Driss, o tal africano que vem do nada, num personagem carismático, cheio de pinta e com mais energia e persistência do que um coelhinho Duracell. É difícil não simpatizar com o homem... ainda que, na nossa vida real, à segunda vez que ele se intrometesse na nossa privacidade sem pedir licença, lhe déssemos um tabefe e cortássemos relações com ele. Mas essa é a a magia do cinema, e Frank Capra fez uma carreira muito bem sucedida construindo este género de histórias. Não é, a meu ver, o ponto mais interessante deste filme, mas é o que mais tem fascinado as pessoas, esta aparente simplicidade que prova que o que importa na vida é o básico e a persistência. Se assim for, tudo o mais virá. No entanto, uma mudança de enfoque da história, que parte do ponto de vista de Driss, tornaria o filme bem mais interessante, mas bem menos apelativo. O personagem de Philippe, o tetraplégico, é mais complexo e fascinante nos seus dramas e na sua luta, e até resignação, da sua condição. Tenta-se criar para Driss uma intriga secundária envolvendo a sua família original e a luta contra a pobreza, mas é apenas um pretexto, nunca explorado em condições, e que serve simplesmente para criar desenvolvimento de personagem. Philippe, pelo contrário, um homem que me parece ser bem menos conservador do que o filme aparenta, vê-se roubado do seu corpo, ficando com uma mente brilhante e ágil, e ideias que só pode concretizar com muito planeamento, se é que as pode concretizar de todo. Driss serve-lhe, sobretudo, para se aceitar a si mesmo, e para lhe criar um caminho mais directo quando a sua paralisia lhe dá para fazer curvas e contracurvas em direcção à felicidade. O africano torna-se, por isso, bem mais importante como catalisador do que como personagem, resumindo-se, muitas vezes, a ser um comic relief ou a um representante do povo num mundo de elitistas e apreciadores de artes de palco. A sua reacção quando confrontado com a arte moderna ou com música erudita é a que esperamos de alguém que cresceu sem a sensibilidade educada, e uma vitória para todos aqueles que acreditam que tais artes não estão destinadas a serem entendidas por alguém simples, o que é irónico perante o tom do filme. É numa sequência em que Philippe apresenta a Driss alguns temas mais conhecidos de música clássica que a noção de "simplórios meets erudição" tem muito mais piada, quando o africano traduz a banalidade em que a sociedade consumista transformou a arte popular de outros tempos.



Já li alguém gabar "Intouchables" por ter uma perspectiva francesa, o que é estranho quando, tecnicamente, a linguagem do filme é toda americana. As montagens musicais, a divisão em três actos, as cenas curtas e concentradas... Os realizadores Olivier Nakache e Eric Toledano tiram os truques do manual mainstream e aplicam-nos em França. O que não é mau, atenção. Neste aspecto, é bem filmado e montado, tem uma direcção de fotografia limpa, e é coerente no entendimento da história. A dupla de realizadores mostra também bom senso quando usa a música sempre mágica de Ludovico Einaudi, que amplifica a força de alguns dos momentos. É usada esparsamente, e com efeito. Mesmo que, a meu ver, as vitórias de Driss não surtam um grande impacto, quando Philippe triunfa, a comoção no espectador é merecida.

Esta é uma obra que apela mais ao coração do que à cabeça, quando começamos a pensar nela; mas o cinema também é isto, uma suspensão do nosso sentido de realidade, que nos faz voar em parapente mesmo que só possamos mexer a cabeça. Nem tudo na vida tem de ser intelecto. De vez em quando, devem ser as emoções a meter as mudanças.

"You've never seen me very upset"


"Mission: impossible", de Brian de Palma

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Review rápida: "Chronicle"



"Chronicle", de Josh Trank, que surgiu do nada, e sem expectativas, deu em filme bem interessante, num cruzamento entre drama de adolescentes e filme de super-heróis... sem super-heróis. No últimos anos, uma espécie de sub-género técnico de filmes gravados em câmaras caseiras tem crescido com sucesso, ocupando maioritariamente o Terror. No entanto, "Chronicle", partindo desta técnica, utiliza-a para um outro género completamente diferente, e através de escolhas inteligentes e inspiradas, revoluciona-o, ao dar-lhe um estilo e um scope que até agora não se tinha encontrado, através de um uso inteligente da estrutura da história, o que permite novos pontos de vista com a câmara.



O filme conta a história de três jovens completamente diferentes: Andrew é o clássico outsider, com um vida familiar péssima e uma vida escolar pior, tendo como único amigo Matt, o seu primo, um arremedo de pseudo-intelectual, sempre pronto e envergar uma citação filosófica, com popularidade na escola, embora não tão grande como a de Steve, que pode ser justamente classificado como o maior da sua aldeia. O trio encontra uma sala subterrânea, de origem desconhecida, e depois deste contacto, ganha poderes paranormais. O que se segue é precisamente a crónica dos bons tempos e da queda inevitável dos personagens.



O que espanta neste filme não é a inteligência da gestão de câmara ou a aparente opulência dos efeitos (é quase impossível acreditar que o orçamento foram 12 milhões), mas sim a forma como as personagens são tratadas. Trank referencia, por admissão própria, "Akira" e "Carrie" no seu filme, e o tema presta-se a isso. Sentimos, desde o momento em que o trio adquire os poderes, que Andrew virará inevitavelmente para um lado muito negro, mas esse processo é estruturado, lógico e nada apressado. A relação entre Matt e Andrew é o enfoque principal, e ao contrário da fórmula habitual do cinema de liceu, onde quem sofre bullying é adorável e injustamente tratado, Andrew é basicamente um solitário, que joga na defensiva, em grande parte por ser maltratado pelo pai, e é gozado e posto de lado porque se presta a isso. O momento em que realmente explode e em que começamos a perceber o seu papel em toda a trama surge com naturalidade e precipita um terceiro acto da narrativa que tem tanto de espectáculo, como de emoção e, numa palavra que é usada no filme, hubris. É mérito do trabalho dos actores, mas acima de tudo, de Trank e Max Landis, que escrevem um cruzamento dos dois filmes já citados com aquilo que suspeitamos ser uma homenagem velada à história da "Fénix Negra", dos X-Men. Esta história, aliás, foi usada no terceiro filme desta franchise, com muito menos efeito e estilo do que em "Chronicle"; e ainda tinha os personagens devidos e actores mais experimentados. Há sempre no filme, a pairar, um sentimento de inadaptação, tanto dos jovens aos poderes, como de Andrew ao mundo que o rodeia. A frase "Com grande poder, vem uma grande responsabilidade" ribomba sem nunca ser dita, e a ausência de princípios morais conduz a um tom darwiniano que não é comum nos filmes do género. Mesmo os super homens necessitam de regras.



O filme tem defeitos, claro. Há um ou outro cliché que não consegue não soar a cliché na história (os vizinhos bullies, por exemplo), e por vezes, questionamo-nos como é que jovens, ainda por cima dos dias de hoje, andam tanto tempo a ponderar os limites dos seus poderes;  ainda assim, sente-se um verdadeiro contexto dramático no meio de toda a acção, com personagens credíveis,e este é um daqueles filmes que surge de nenhures e nos interessa sem verdadeiramente esperarmos. O filme vai crescendo e crescendo, e nunca vacila. A set-piece final é mais impressionante do que, por exemplo, a fita "Green lantern" toda; a esta teve orçamento mais de dez vezes maior e o homem que tinha reinventado James Bond em "Casino Royale".
 Josh Trank foi escolhido para tomar conta do Quarteto Fantástico, e depois de ver este filme, percebe-se.
Não é perfeito, mas é bom o suficiente para que a não perfeição faça parte do seu encanto natural.


domingo, 15 de julho de 2012

segunda-feira, 9 de julho de 2012

There are two kinds of people in the world, my friend: Those with a rope around the neck, and the people who have the job of doing the cutting.


"Il buono, il bruto, il cattivo"

"Idi i smotri" ("Come and see")



O actual cinema de guerra ficou definido por duas obras que, curiosamente, estrearam no mesmo ano e são completamente diferentes uma da outra. Em 1998, "Saving private Ryan", de Steven Spielberg e "The thin red line", de Terrence Malick atingiram o auge daquilo que se podia alcançar no género. Estlisticamente, todo o cinema bélico desde esse ano deve algo, se não tudo, à magnífica obra de Spielberg; e aqueles que se atreveram a ser mais reflexivos sobre os efeitos do conflito no pensamento e almas humanas nunca fugiram muito à maneira como Malick os define no seu esplendoroso filme. Embora o primeiro seja um filme de guerra e o segundo seja um filme sobre guerra, ambos se complementa, e uma sessão dupla nunca será um mau programa nocturno, principalmente por quem se interessa pelo assunto no geral, e a 2ª Guerra Mundial em particular.



No entanto, a guerra entendida pela América, por muito que falemos de dois realizadores com sensibilidades distintas, é muito diferente da que vê de uma perspectiva europeia. Ainda mais se esta for russa. O cinema russo, aliás, sempre viveu um pouco à parte de todo o restante europeu, apesar nos ter dado mestres como Tarkovski ou Einsenstein que, à sua maneira, foram decisivos para a história do cinema. Tarkovski, em particular, tratando o celulóide como quem constrói castelos de biasma em espaços diferentes, montou a iconografia de um certo cinema russo do pós 2ª Guerra Mundial onde a realidade se questiona, e o lento desmoronar de qualquer coisa (desde os indivíduos até às construções sociais e morais) é uma constante. Para os russos, a depressão é o seu feel good, por paradoxal que isto pareça.

"Idi e smotri" é a continuação dessa lógica, e uma combinação dos estilos dos dois filmes acima referidos. É, por um lado, uma intensa reflexão sobre o efeito desorientador e desumanizante que a guerra tem no indivíduo; e por outro, possui cenas de uma intensidade feroz. O pano de fundo é a invasão nazi da Bielorrússia, e o nosso guia por todo o inferno que daí advém dá pelo nome de Florya, um rapazinho que desde o início do filme ignora os mais velhos e procura activamente juntar-se a um conflito, dando o motivo de que todos os seus amigos estão a combater. Porque não ele? A sua necessidade de, em fase pré-adolescente, se querer afirmar logo como homem impele-o para um conflito que nem compreende e encara como um jogo. Está na cara que a coisa vai acabar mal.



O que se segue é um passeio ao outro lado do Inferno. O batalhão de Florya envolve-se numa batalha e é dispersado. O jovem acaba com uma rapariga da sua idade e depois de um breve delírio panegírico, ambos são devolvidos a uma realidade de massacres e cadáveres. Entre pessoas e gestos, os russos mostram uma atitude fatalista perante toda a situação, espelhada num sentido de humor que a palavra "mórbido" mal consegue traduzir. Depois de andar em bolandas buscando uma vaca, Florya é capturado pelos nazis e entra-se na sequência mais perturbante do filme, e das coisas mais desconcertantes que já vi no cinema, onde o exército nazi decide brincar ao extermínio com os habitantes de uma aldeia bielorrussa. A intensidade desta cena não está naquilo que se mostra: está exactamente em termos chegado àquele ponto com a exacta noção daquilo que é a guerra. Ver toda uma população a ser queimada num celeiro por pura diversão não deixa o espectador indiferente, acreditem, e algo que ficará convosco bem para lá do visionamento de "Idi i smotri". Essa é a grande força do filme: ser uma experiência visceral daquilo que é a guerra, diferente da que, por exemplo, "Saving private Ryan oferece. Se nesse filme somos colocados dentro da guerra, em "Idi e Smotri" a guerra é colocada dentro de nós. A arrasadora cena final, embora longa demais, é a chave para se perceber porque é que o título original do filme era "Kill Hitler" e um revisionismo histórico do nazismo bem mais poderoso do que "Inglourious basterds" alguma vez sonharia.


O filme tem as suas limitações, principalmente técnicas. A montagem parece pedestre, em certos momentos, e a captação de som deficiente e incompleta nalguns casos. Mas a realização de Elem Klimov, no seu último filme, é certeira, poderosa e na sua simplicidade técnica, um primor. Klimov usa quase sempre steadycam, numa certa sensação de urgência imediata, mas consegue, ainda assim, planos de uma grande beleza e na citada sequência na aldeia bielorrussa, 40 minutos profundamente desagradáveis no melhor sentido.

Não é possível descrever o impacto de "Idi i smotri" em palavras. Só de tentar, até me sinto mal. Vede, mas num dia em que estejam em modo Pinnipon.

Scene it: "Lost highway"




Construir uma cena de verdadeiro terror é muito mais difícil do que parece. Nos tempos que correm, parece haver uma fórmula pronta para criar uma falsa tensão que apenas desperta em nós, no máximo, um sobressalto temporário que rapidamente esquecemos: um som em altos berros, movimentos súbitos na banda sonora, uma montagem rápida. Tudo isto, na cartilha do cinema que não se sente, parece ser o suficiente para criar o medo no espectador. No entanto, se percorrermos mentalmente os grandes filmes do género, facilmente percebemos que a tensão do susto não surge de momentos isolados. É sim uma construção cuidadosa desde a primeira cena, criando em nós um desconforto que amplificará os momentos de verdadeiro horror que nos esperam. Os grandes cineastas, e até mesmo aqueles que são simplesmente talentosos, sabem que, qualquer que seja o género, o ambiente é tudo.

"Lost highway", de David Lynch, não é um filme de terror. Aliás, é difícil inseri-lo num género, como a maior parte dos filmes do norte-americano. Um thriller mental talvez seja a melhor definição; e no entanto, marcou a minha adolescência como uma fonte de medo. O porquê é difícil de explicar cientificamente. Não há monstros literais (aparentemente...), não existem fantasmas (aparentemente..), nem criaturas das trevas (aparentemente...). O que existe é um crescendo de bizarria que perturbou o meu sentido de compreensão do mundo onde o filme se desenrola. Visto como um todo, "Lost highway" faz sentido até; mas as partes em que se divide são, cada uma delas à sua maneira, perturbações do quotidiano, elementos estranhos num tecido que tomamos por garantido em normalidade. Por outras palavras mais simples, são esquisitos como o caraças.

Há no filme dois momentos em particular que me fazem encolher, especialmente. Num deles, o personagem principal, um saxofonista interpretado por Bill Pullman, observa um corredor mergulhado em breu, com o mesmo tipo de reacção que esperaríamos de um burro a olhar para um palácio. A escuridão não se limita apenas a estar ali: trepa pelas paredes, come a luz, perturba o personagem de Pullman, confrontado entre o vazio do negrume e um outro mais voluptuoso, interpretado por Patricia Arquette, que se encontra no seu quarto.
Mas é no segundo que me reencontro sempre com o género de coisas que me causam medo: as subtilezas. Bill Pullman encontra-se numa festa algures em Hollywood. Até então, o filme revela que algo o vem perturbando, se calhar até ele mesmo. Mas tudo decorre normalmente. O personagem ali a contra-gosto, mas tenta suportar tudo através do álcool. É então que surge um estranho personagem (interpretado por um Robert Blake que anos mais tarde viria a ser condenado pelo homicídio da esposa). O que se segue é uma conversa onde as leis da Física são desafiadas, nomeadamente a que não permite a ubiquidade dos seres. A interpretação de Blake, juntamente com o seu visual, aumentam tudo aquilo que de errado a cena pode ter. Há também um telemóvel extremamente parolo envolvido, facto que pode ajudar ao terror. Em sentidos diferentes, ambos os indivíduos estão deslocados da festa. Nenhum deles conversa com mais ninguém, e no caso do estranho personagem de Blake, ninguém reconhece a sua presença, a não ser o seu interlocutor. Lynch consegue este efeito de redoma no espectador cortando a banda sonora e criando um subtil barulho ambiente que nos concentra no diálogo de pura non-sense, onde a certa altura, Bill Pullman está a falar com a mesma pessoa cara e a cara, e também ao telefone, e mesmo questionando inicialmente, aceita tudo como real. Psicose? Talvez; cria-se, no entanto, um estado de agouro permanente daí em diante. Se aquele momento for real, ou mesmo irreal, o tecido da narrativa fica inevitavelmente contaminado. Ou seja, eis como um instante construído com cuidado e labor pode condicionar o resto do filme para o espectador, e amplificar todos os ínfimos momentos.

Isto, caros leitores, é como se constrói uma cena de terror, e se traumatiza permanentemente um homem feito com 29 anos.

terça-feira, 3 de julho de 2012

"Oh sonny... don't go to war"


"Idi i smotri", de Elem Klimov

Aberturas: "Se7en"





Esta é mãe de muitos genéricos criados depois de 1995. O seu estilo esguio e tétrico invadiu sequências de títulos em filmes e séries, influenciou videoclips e talvez não seja exagerado dizer que voltou a trazer atenção e cuidado a esta arte tantas vezes desprezada e que pode ser tão útil para marcar logo o tom de um filme e prender a atenção do espectador. Embora o filme "Se7en", de David Fincher, não se inicie com estes dois minutos e quinze de condensada perturbação, é com eles que entramos, de facto, no mundo de espelhos horrorosos a que o filme nos expõe nas duas horas seguintes.

Em “Se7en”, somos confrontados logo de início com imagens tétricas, sombrias, difusas. O assassino prepara meticulosamente a sua obra. Podemos vislumbrar algumas das suas influências, dos seus fetiches, das suas taras. Tudo filmado num escuro de breu, onde a luz se intromete timidamente de vez em quando. O objectivo de Fincher quando se decidiu por filmar desta maneira era mostrar-nos o mundo do ponto de vista de Doe. Repare-se que as letras dos créditos tremem e estão rabiscadas. Nada parecido com o que estamos habituados a ver. Mas se Doe não vê o mundo de maneira normal, porque não podem eles ser diferentes? Curiosamente, tudo foi descoberto através do acaso: Kyle Cooper fora encarregado de filmar os nomes que compõem o genérico. Isso é feito geralmente por uma câmara fixa que grava as letras sobre uma mesa. Dessa vez, porém, ele esqueceu-se de colocar o obturador na câmara, que é aquilo que a mantém fixa. 

O genérico é composto por uma série de imagens retorcidas, de close-ups de mãos e de dedos, que a única coisa de humano que nos é dado a observar. Essas mãos assumem capital importância, pois apreciamos, sem percebermos ainda bem, a obra de John Doe, a sua instrumentalização. Ou seja, tudo nasce das mãos de um homem. Como que para reafirmar essa diferença entre o mundo de Doe e o nosso, Fincher aplica truques de câmara, como duplicar uma imagem no ecrã. Há também um sentimento de perigo que se desprende daqui. As cores dominantes são o vermelho, o preto e um branco tão pálido que nos questionamos se será realmente branco. Este facto contribui para essa sensação. Além disso, os cadernos, as lâminas, as máquinas, os lápis, as folhas são filmados para nos fazer parecer que esses objectos comuns são todos perigosos. Nem mesmo o que há de mais quotidiano pode ser tomado como algo seguro. No mundo de Doe, tudo é ameaça.

O que também aparece neste genérico são os famosos diários e fotos de John Doe. Até aqui Fincher se revela perfeccionista e quase demiurgo: gastou 15.000 dólares a mandar fazer verdadeiros diários, com a escrita de Doe, as suas impressões, a sua colecção de imagens, os seus trabalhos manuais. Podiam ter simplesmente colocado lá uma fila de cadernos que a nós não nos fazia diferença, mas o realizador fez questão de tornar o cosmos de Doe em algo real e palpável. É um facto que nada é descurado por Fincher e estes genéricos poderão parecer simplesmente exibicionismo de um virtuoso, mas acredito sinceramente que fazem parte da sua visão do processo narrativo, da sua teoria de que tudo deve ser usado para contar uma história e lançar o ambiente do filme. Tudo em Fincher indica para o caminho em que um filme é um objecto total.