domingo, 30 de dezembro de 2012

"Argo"



A ideia de Ben Affleck, o realizador, tem ganho permanência nas nossas mentes desde o seu início em "Gone baby gone". Num começo prometedor, guiando um thriller de maneira segura e com excleentes performances, Affleck permaneceu na sua Boston natal para transformar "The town" num daqueles filmes de que era impossível não se gostar no ano de 2009. Neste ano, o realizador/actor tomou a decisão de mudar de ares, como que para provar de que a sua musa da Costa Leste não era o que definia e marcava a qualidade do seu cinema. Desta vez, mantendo no género do thriller, viajou para o Médio Oriente, e o resultado é um filme que embora não deslumbre pela perfeição das imagens, é muitíssimo competente e mostra Ben Affleck como um dos realizadores que melhor sabe contar uma história escorreita e eficaz.



A história do filme parece inventada, mas é baseada em factos verídicos: no meio da revolução iraniana em 1979, a embaixada norte-americana é ocupada por cidadãos do país, e no meio da confusão, seis funcionários escapam-se para a casa do embaixador canadiano, permanecendo em segredo no país. Para evitar um embaraçoso incidente internacional, o governo norte-americano arrisca um plano ousado (leia-se absolutamente desequilibrado) que propõe a simulação das gravações de um filme de ficção científica em território iraniano para infiltrar um agente que retire os seis cidadãos americanos do país. Alguém ponderar este plano de forma séria já é risível; saber que resultou, supera isso. No entanto, é a história perfeita para um filme de Hollywood: é high-concept o suficiente para poder ser definido num par de linhas, e transmite a mensagem tão querida no meio artístico que a arte, no caso o cinema, pode de facto mudar a História e ter uma intervenção importante na vida das pessoas. Ben Affleck não nos atira com isso constantemente à cara, e aí, pontos para ele. Mas essa ideia está subjacente e não pode se retirada.



O filme divide-se em dois palcos de acção distintos: uma viagem de Tony Mendez, o agente que idealiza todo o plano (e é interpretado por Affleck com calma, soturnidade e barba de três semanas, o que para uma cara bonita significa "estou a fazer um papel sério"), a Hollywood para criar, de facto, um filme a sério e do qual os iranianos não possam desconfiar; e uma Teerão feita ratoeira, onde a qualquer momento os guardas revolucionários podem descobrir que faltam seis reféns na embaixada, e a situação vira para o torto (fantástico o instrumento com que este suspense é mantido e que não revelarei). Na primeira, desenrola-se uma comédia de bom ritmo, onde Alan Arkin e John Goodman mostram como fazer rir sem transformar um filme sério em ridículo, com boas tiradas ("If I'm going to produce a fake movie, it's going to be a fake hit"). Desconstrói-se um pouco de Hollywood e mostra-se como o cinema, no fundo, é a arte de fazer parecer sem que se faça muita coisa realmente. Desviar a atenção daquil que existe para uma criação ficcional daquilo que se quer fazer acreditar que exista. Ou seja, criar um filme não é muito diferente de fazer espionagem. Goodman, bonacheirão e bem disposto, contra-balança a impaciência e língua afiada de Arfkin, como um produtor famoso, mas ultrapassado, que vê neste "projecto" a oportunidade de fazer algo de diferente com a carreira.



É em Teerão, no entanto, que se centra a real angústia que permeia o filme. Mesmo para quem conhece o caso real e seu desfecho (como era o meu caso), a narrativa do filme avança fluida e transporta-nos para um estado de incerteza onde tudo parece tremido até ao final. É certo que os clichés não são poupados, mas Affleck atira-os com galhardia, no momento certo e sabe criar condições para que, inconscientemente, quase peçamos que esses clichés aconteçam. Tudo porque não queremos que a história acabe mal. Por estranho que pareça, a mistura entre os dois elementos (comédia e thriller) e muito bem utilizado pelo realizador. A prova está no facto de ambos se complementarem e serem reflexos um do outros em vez de se anularem e atrapalharem. Uma sequência prova este simples facto, e é virutosa e inesperada: entrecortando a leitura pública do guião do seu filme falso (uma ficção científica série B altamente manhosa), com direito aos típicos taradinhos e figuras da Hollywood superficial e decadente, com a leitura pública de um comunicado político por parte de alguns revolucionários, focando também o drama daqueles que estão reféns na embaixada, Affleck mostra como, seja política ou cinema, é tudo um espectáculo; e por isso, a ideia de usar um filme falso para resolver um imbróglio diplomático não será assim tão descabida.



Destaca-se ainda Bryan Cranston (como sempre, excelente) no papel do superior de Ben Affleck., que reforça uma das ironias no filme: para um plano que depende tanto do espectáculo, é estranho como o seu sucesso passará despercebido durante vários anos, sem nunca se saber o que realmente aconteeu. Affleck chama a si também um papel ingrato na posição de actor, assumindo a personagem mais apagada, eno entanto central à história. Tudo porque ele sabe que é assim que deve ser para que o filme resulte e cative. Sacrificar-se em prol da sua obra? Marca de um realizador muito bom. A continuar assim, teremos de usar a palavra "excelente" a seguir ao seu nome; e não parecerá nada estranho.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"EVERYONE!!!!!!!!!!!!!!!"


"Léon"; de Luc Besson

"Brave"



"Brave" tem um enorme problema que vai gerindo durante a hora e meia de duração: traz a marca "Pixar", mas em simultâneo, é um filme Disney. Parecendo que não, ser filho de ambos os ventres não é exactamente fácil. O modelo Disney, por muitas transmutações que lhe dêem, vem formatado e reflecte-se, por exemplo, no modelo da história, onde uma princesa tem de decidir o seu destino, tendo como pano de fundo conflitos entre clãs escoceses (e a belíssima paisagem do país). A irreverência da Pixar, neste ponto, é retirar da equação um dos pontos principais de qualquer história de princesas: o príncipe. De facto, e surpreendentemente, não há qualquer tipo de intriga amorosa, e o objectivo de Merida, a ruiva de cabeleira indomável que protagoniza a película, nunca passa por ou depende de um homem. Ela procura o seu próprio caminho, porque quer ser feliz. Por seus próprios meios. Há aqui uma deliciosa subversão da marca maior da casa do ratito de orelhas grandes.



No entanto, o peso Pixar faz-se sentir na hora de avaliar. É impossível dizer que estamos na presença de um mau filme: há um sentido na história, alguns momentos bem filmados e divertimento (por vezes mais pueril, mas entende-se que a abdicação do princípio da princesa Disney tenha chegado com um preço) e prestações vocais excelentes (com destaque para Emma Thompson e Kelly McDonald, mãe e filha com trovão e fricção suficientes para ultrapassarem as linhas dos desenhos) e o primeiro acto é uma maravilha de estabelecimento de personagens, conflito, ambiente e uma cena badass protagonizada por uma mulher que atropela o orgulho de três herdeiros do respectivos clãs escoceses, que lutam pela sua mão numa prova de arco e flecha. Tudo isto entusiasma e dá a ideia da chegada de um excelente filme da Pixar, depois do desaire de "Cars 2". As mulheres, e neste caso a luta de vontades entre elas (a rainha Ellinor quer fazer cumprir uma tradição sobre a qual toda a estabilidade da Escócia se aguenta; a filha, Merida, pretende procurar a sua própria felicidade sem constrangimentos e com o seu direito a escolher), os homens são cartoons na definição mais simplória do termo, sem uma personalidade própria e representando a ideia estereotipada que temos dos escoceses: brigões, beberrões e usando o seu kilt de mil e uma maneiras marotas. É engraçado, mas espera-se sempre mais da Pixar.



Depois de um twist quase Myiazakiano (que não vou revelar), o filme entra na sua vertente mais próxima da Disney: um vilão mau, muito mau, uma bruxa, uma lição familiar e a moral de que por muito que se queira ser independente, se deve amar a família e escutar tudo o que eles no dizem, embrulhando toda a história (e o apressadíssimo terceiro acto) num lacinho brilhante e algo asséptico que não é habitual na Pixar. Para mim, os filmes desta casa são sinónimo de ficar em lágrimas quase, emocionado, arrebatado. "Brave" é divertido, muito bem desenhado (o pormenor das paisagens escocesas é de deixar uma pessoa a trocar as retinas) e tem algumas personagens cativantes, mas sem uma complexidade de leitura que ultrapasse o simples trabalho de animação. É um excelente desenho animado, mas um razoavelmente bom filme da Pixar. Eis o momento quando a excelência é a nossa principal inimiga.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

"The grey"



Liam Neeson tem construido uma carreira recente praticamente ao contrário de todos os outros actores da sua geração. Ao invés de aceitar papéis secundários de luxo em produções de estúdio ou protagoninstas melancólicos em filmes independentes desenhados para o prestígio, o irlandês que nunca consegue disfarçar a origem do seu sotaque tem forjado a carreira num nicho muito restrito: o de herói de acção cinquentenário. "Taken", de 2008, gravou na mente de uma geração mais nova e impressionável uma imagem de Neeson com que a maioria dos cinéfilos não se identifica. Por muito bacoco que seja, o discurso ao telefone desse filme de Pierre Morel tornou-se numa daquelas cenas que entram de imediato para a cultura popular. O actor aproveitou a boleia para fazer mais filmes do género, dando as boas vindas a uns milhões de dólares com que não contaria nesta altura da carreira. Liam Neeson, ao invés de Oskar Schindler, tornou-se sinónimo de um homem com um conjunto particular de habilidades, boa parte delas em forte conflito com os departamentos de ortopedia dos hospitais europeus.



Por isso, quando surgiu o rumor que de "The grey" envolveria uma luta de sobrevivência, entre homens e lobos, geeks e pessoas facilmente impressionáveis em todo mundo entraram em frenesim. A situação chegou a um ponto em que a alcunha do filme era "The wolf puncher". Pois bem, a boa notícia é que "The grey" é uma absoluta surpresa para quem está à espera de mais um esforço alimentício às costas de um herói de acção improvável. Um filme que cruza sobrevivência, depressão, a questão da ausência de Deus e um clima antecipação trágica que, esse sim, se pode esmurrar não são características que se podem antever do trailer, mas estão lá; e fazem dele um objecto complexo. O personagem principal, o John Ottway de Neeson, é um segurança num complexo de exploração petrolífera no Alasca. Desde o início do filme que está à beira da depressão suicida; e os seus desejos parecem ter sido atendidas, quando o avião em que se desloca com os colegas de trabalho, se despenhar no meio de nenhures. No meio de tudo isto, existem as temperaturas gélidas, a falta de comida, mortos e uma matilha de lobos que parece ter uma especial predilecção por carne humana.



O que resulta daqui é um filme de sobrevivência duro e inesperadamente emocional. Liam Neeson tem a sua melhor performance em largos anos. Um momento, em particular, pouco depois de o avião despenhar inverte tudo o que damos por certo na imagem durona que o irlandês tem criado nos últimos anos, sem no entanto nos pôr a duvidar de que ele é o macho alfa daquela grupo. É um momento quase inesperado de emoção que rapidamente desaparece na necessidade de sobrevivência nas circunstâncias mais adversas, mas fica na memória e estabelece, para lá da sua testosterona, o carácter de Ottway. A acompanhá-lo, um conjunto de personagens habituais neste género (o crente religioso, o homem de família, o cínico machão, o comic-relief), mas desenham apenas o suficiente para não desaparecerem no meio da neve. Curiosamente, para um filme onde os lobos são o antagonista mais óbvio, as mortes provocadas pelos animais são filmadas de forma rápida e eficaz. É no confronto entre os desesperados homens e a Natureza que está o principal interesse e conflito da obra. Expõe-se um conflito entre o Homem e o Caos, e a arbitrariedade de tudo o que constitui a vida. Na verdade, toda a ausência de sentido aumenta com o facto de sabermos a tendência suicida de Ottway. É como se a imensa montanha gelada, com as suas florestas impenetráveis fosse o seu mundo mental e os lobos os demónios que o perseguem e acicatam. É um paralelismo interessante e que resulta através da interpretação intensa de Neeson. Talvez seja curioso o facto de o actor ter passado por uma crise semelhante durante a rodagem do filme, visto que a sua esposa, Natasha Richardson, morreu pouco antes do início.


Carnahan mantém a realização apertada e usa a agitação da imagem com eficácia, e alguns toques graciosos aqui e ali. A tensão é mantida durante todo o filme, com espaço para momentos de camaradagem e revelações pessoais que vão construindo a nossa própria relação com os personagens. Não são duros, nem heróis... São homem que tomaram decisões e vivem com elas, que vão da bravura exclamativa à percepção do seu verdadeiro lugar no mundo natural no tempo de um uivo mais forte. São falíveis, portanto, e estão entregues àquilo que não podem controlar. Carnahan reforça isto colocando sempre os corpos numa perspectiva anã em relação ao cenário, deixando-os desfocados como se fossem simples sombras que não fazem mossa. Utilizar estes estilo, agitado e tremente, não é para todas as mãos. Que o diga David Goyer, por exemplo, que arruina "The end of watch", que vi hoje, por uma péssima utilização dessa técnica. Aqui, o realizador não falha: o imediato da acção e a majestade da paisagem coexistem, aumentando o impacto da luta pela sobrevivência. Não é excepcional o tempo, mas quando o é, ressoa os temas do filme; e isso é uma
das coisas mais básicas sobre realização de cinema.



O filme tem um ou outro defeito com que se vive bem. É complexo, mas não fastidioso, e entretém esticando um pouco dos limites da credulidade. No entanto, o final do filme é absolutamente honesto e perfeito, e tendo o início o tom quase desesperado da tristeza humana, tudo o que está no meio são pormenores (mesmo que um desses pormenores seja um desastre de avião magnificamente filmado). Como no início, está tudo em Neeson. Na sua cara, na sua expressão nos seus olhos. A morte e a ressurreição. Mesmo que os olobos sejam o principal chamariz, é o irlandês que nos chama à luta. Uma e outra vez.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Não se pode comer só gourmet



"Pirates of the Caribbean", filme de 2004, não devia ter funcionado. No entanto, uma mistura de acidentes felizes  fabricou o início de uma das sagas de maior sucesso da última década. A base era um entretenimento de parque temático Disney, mas não interessava: a ponta de irreverência que por acidente entrou no filme deu-lhe um tom de frescura que o distingue de outras blockbusters de aventura, inclusive das suas próprias sequelas. É um estranho híbrido entre um filme de aventuras a sério e o seu gémeo gozão. O filme funciona porque finalmente se deu rédea solta a Johnny Depp num filme mainstream (e num papel que, se atentarmos, não é exactamente aquilo que esperamos numa actuação comercial); porque o ar cabotino de Orlando Bloom, essencial para compreendermos a sua carreira, é posto no melhor dos usos; porque Keira Knightley não é uma donzela tradicional e tem talento para perceber que o que se lhe pede é, precisamente, que não o seja; e Geoffrey Rush não precisa de adjectivos. As partes 2 e 3 eliminaram um enfoque nas dinâmicas entre estes personagens e adoptaram a máxima de "quanto maior, melhor". Resultado? São chatos que dói.
O quarto filme da saga muda de condutor, e Gore Verbinsky dá o lugar a Rob Marshall. O resultado é uma fita com uma clara divisão: os momentos em que Johnny Depp aparece, ora com Rush, ora com a neófita Penelope Cruz (que está do caraças), e os outros onde se introduzem personagens que fazem da narcolepsia um instrumento de profissão. O mobil da fonte da juventude está bem esgalhado, e verifica-se uam corrida a três pela sua posse entre piratas, ingleses e, no subtexto mais interessante do filme, os espanhóis. Há um ou duas set-pieces bem encenadas, mas nada de extremamente memorável. Gore Verbinsky não é um realizador de encher o olho, mas sabe que a loucura é matriz principal desta saga. Rob Marshall traz diversão, mas sem açúcar; e se bem que Jack Sparrow é demasiado doce para sofrer de dieta, o resto do filme acaba por se arrastar um pouco mais do que devia, entre a diversão ocasional.



"Real steel" é um daqueles filmes com coração onde parece picuinhas falar mal. Mas eu não sou propriamente conhecido pelas minhas boas maneiras. No entanto, há que ser honesto: Hugh Jackman é um actor que merece tudo o que de bom lhe acontece, pois é um duro carismático, que equilibra bem o sentimentalismo e a agressividade da rudeza australiana que lhe encaminhou o papel de Wolverine. Tendo o desafio de interpretar um homem que ignorou, até ao início do filme, o seu filho (e se vê obrigado a ter de passar com ele um Verão no meio dos robôs pugilistas que compõem a sua profissão), ele cativa e atrai o espectador, ajudado pelo ar reguila de Dakota Goyo, que interpreta o petiz. Evagenline Lilly aparece, e só se pode aplaudir isso. No entanto, a partir do primeiro quarto, o filme imita (para não dizer "rouba) a intriga de "Rocky". Não é homenagem, é roubo. Ponto por ponto: a história de um robô que todos julgam ultrapassado e volta para desafiar o campeão do mundo não surpreende e só ressoa pelos dois actores em questão Há bons efeitos especiais, mas de resto, dispensa-se.



"Die hard 4" devia ser pior do que é; mas entretém e é divertido dentro da sua irrealidade (Mclane contra um helicóptero; Mclane contra um avião a jacto; Mclane passa um dias com um nerd e não lhe dá três galhetas). Numa intriga que o coloca contra piratas informáticos que se aliam a atletas de parkour, Bruce Willis passeia um ar enfadado, mas sem comprometer. Mantém-se a tradição de haver vilões fracos quando não se entrega o papel a britânicos )Timothy Olyphant é bom actor, mas consegue ser das piores coisas do filme) e Len Wiseman, não sendo John McTiernan (não há, actualmente, mitos bons realizadores de acção com menos de 60 anos. Porquê? Não sei mesmo, mas parece estranho, não é?) carrega as coisas em modo cruzeiro, sem dar tempo para pensar nos imensos buracos narrativos e em toda a estranheza de vermos um "Die Hard" que tem muito pouco de hard e onde a acção e linguagem acabam por ser bastantes soft em aparato.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Rapidinho: "Apocalypto"



Sou daqueles mete nojo que chega, com confiança, a uma discussão acerca do filme "Braveheart" e diz que o achou mediano. Bem sei que é pecado. Aparentemente, a obra épica de Mel Gibson é vista por quase todas como um filme imaculado, inspirador, que conta uma história que urge ser espalhada. Não partilho nada dessa opinião: Gibson é um bom realizador de grandes cenas, trepidantes, que prendem à cadeira. Adora uma boa história de vingança e sangue e exprime-o no ecrã com grande vontade e competência; no entanto, não tem grande capacidade de conduzir uma intriga emocional, e estampa-se quando tenta defender factos históricos inventados. Exagera a mão em cenas que, embora na altura nos pareçam transcendentes, são apenas cheesy. O referido filme sofre bastante disto quando sai das batalhas e entra na história entre William Wallace e a rainha de Inglaterra; e para além disso, o final é... bem, dependendo das pessoas a quem perguntarem, transcendente ou lamechas.



Já "The passion of the Christ" é um filme mais interessante. Polémico pela sua dose de gore (e esse é um dos seus grandes defeito) é, no entanto, uma obra bem mais pujante e bem conseguida. Gibson tem um objectivo, e é inegável que mesmo discordando, percebemo-lo: Jesus Cristo é alguém que devemos admirar, pois era nobre e sofreu agruras por nós. Olhem bem o que lhe fizemos e como ele enfrenta isso com sacrifício e compostura. É o filho de Deus, e no entanto, na sua relação com Maria, mostra-se um mortal, humano, com os nossos sentimentos. O filme, embora mais extenso do que devia, é realizado com um sentido estético que estranha ver em Gibson (excelente, a fotografia de Caleb Deschanel), mas cumpre o seu propósito, e mistura um tom rude de filme histórico e uma transcendência de mensagem religiosa que harmonizam estranhamente bem.



Não estranha, então, que "Apocalypto", o último (até ver) filme de Gibson seja de facto excelente. O motivo é a mistura das duas coisas em que Mel Gibson já mostrou ser, de facto, muito bom: uma intriga de vingança, envolvendo um homem que se ultrapassa pela sua família, e cenas de boa acção e pancada, com um realismo ao nível gráfico que arrepia ocasionalmente. O filme conta a história de Jaguar Paw, um índio maia cuja tribo é devastada e capturada por outra bem maior e supostamente mais civilizada. O objectivo é levar os sobreviventes para servirem de sacrifícios humanos na grande cidade. Jaguar Paw tenta desesperadamente fugir dos seus captores e voltar para a sua família. Tudo podia ser dado de forma simplista e directa, mas Gibson serve-se desta história para transmitir duas ou três coisas sobre os males da civilização e corrupção do Homem que envergonham muito bom documentarista e cineasta panfletário. O contraste entre a vida em tribo, em comunhão com a Natureza e num espírito de comunidade, com o degredo da grande cidade, espelhada nos actos bárbaros de uma civilização tecnologicamente avançada não é difícil de constatar. Gibson tem até o cuidado de não fazer disto um cântico inocente e ingénuo como outros cineastas superiores (como Malick) o fazem. Há sujidade e dureza no modo de vida simples de quem vive na selva; mas o encanto, espírito comunal e entretenimentos simples estão lá e seduzem em comparação com o que encontramos na cidade maia: superficialidade  um desprezo geral pela vida animal e humana, manipulações políticas, a perda de qualquer tipo de valor. Tudo isto falado em Maia e sem grandes discursos.



Aliás, "Apocalypto" prova que Mel Gibson é um cineasta de imagética e muito pouco de palavras. Uma sequência em que descobrimos através de frescos murais aquilo que desconhecemos no futuro da cena é um portento de simplicidade e poupança narrativa. As sequências de acção não servem só para causar tensão, mas acima de tudo para estabelecer personagens e suas relações. Tecnicamente, o filme é excelente e embora em partes a história se disperse demais para o destino da família de Jaguar Paw, isso não atrapalha o ritmo do filme, pois este acelera sempre que volta ao seu personagem principal, com desafios e obstáculos ainda mais difíceis do que o anterior, aumentando o sentido épico e fazendo crescer a mística do nosso herói. O tom inicial do filme, no entanto, é o de aproximar estes Maias cuja existência está afastada da nossa 500 anos da normalidade, contando um quotidiano que pouco difere do nosso, com relações de amizade e camaradagem, piadas de "gajos", partidas e relações familiares/emocionais onde nos podemos rever. Num ou noutro ponto, Gibson força uma piada de estereótipo que irrita, mas no geral, é louvável a tentativa que faz de aproximar noções de vida tão diferentes e forçar-nos a ver que, no fundo, somos todos humanos. Para alguém que é visto de momento como um xenófobo, é estranho, até, e deixa-nos a pensar sobre a maneira como Mel Gibson, a pessoa, é distorcida pelo circo mediático que o rodeia. Este filme tem tudo o que Mel Gibson adora: sangue, execuções, violência bem gráfica, e tudo isto banhado pela luz de tochas.



O filme tem alguns defeitos, ainda assim: a banda sonora é banal, e se bem que o ritmo do filme seja trepidante, há poucos clichés de filme de acção que Mel Gibson não atinja. Um particularmente infame é a maneira quase sobre-humana como Jaguar Paw ultrapassa os seus ferimentos como se não existissem, exibindo uma pujança física impossível. A certa altura, o exagero é tal que uma mulher grávida luta contra um macaco usando uma estalactite. Felizmente, a história tem comida mental suficiente para que estes sejam pormenores que não estragam a experiência. No final do filme, a mensagem de fuga da civilização é reforçada com a chegada da mudança ao continente americano. Jaguar Paw vira costas à mudança e retrocede para o interior da selva com a família. Ele sabe que o apetite voraz do Homem é o seu derradeiro inimigo e a causa da sua queda. Sabiamente, escolhe retroceder e viver com aquilo que o satisfaz e lhe traga felicidade. É, numa última instância, um pouco infantil, mas uma lição importante para o mundo de hoje. Afinal, uma grande civilização só se consegue destruir a partir do interior.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Crónicas americanas


O declínio de Oliver Stone é um dos grandes mistérios do século XXI cinematográfico. Não é o objectivo deste artigo tentar explicar as razões desse fenómeno, mas seria omisso se ignorasse esta evidência, tão mais evidente pelo percurso formidável que o realizador traçou desde meados da década de 80 até ao final dos dez últimos anos do século XX. Embora tenha começado a carreira como argumentista (ganhando um Oscar por "Midnight Express" e arrepiado sensibilidades com a verdadeira ópera de serrabulho barroca que é "Scarface"), Oliver Stone adquiriu fama de imbatível com três clássicos feitos praticamente de rajada: "Plattoon", "Born in the 4th of July" e "Wall Street". Os dois primeiros, que começam e seguem a sua trilogia do Vietname (completada, em 1993, por "Heaven and Earth") remetem para a experiência mais marcante da vida de Oliver Stone, o artista: o período em que combate no Sudeste Asiático.


"Platoon" bebe directamente nessa vivência. O personagem de Charlie Sheen emula, por admissão do realizador, o próprio Stone, e no meio do caos da guerra, "Platoon" é no seu centro uma batalha moral, onde a humanidade e a bestialidade que se debatem dentro de cada soldado são representadas, respectivamente, pelos sargentos Elias e Barnes. "Platton" é reconhecido por captar a vertigem da guerra, mas é interessante como se centra não tanto na tensão, mas mais na desorientação e de como as regras da moral, no conflito, são viradas ao contrário. "Born in the 4th of July" continua este abandono das regras, no caso as da decência. O relato de Ron Kovic, um paraplégico que caminha do patriotismo convicto para o patriotismo enraivecido, zangado por ter sido abandonado e usado pelo país em nome do qual lutou no Vietname, é apenas a continuação lógica das próprias reflexões de Stone sobre o conflito, não deixando que a América esquecesse uma ferida que estaria aberta enquanto não a quisessem fechar convenientemente. "Wall street" é uma variação deste tema, de uma América que se ataca a si mesma, e aos próprios cidadãos. Através da figura de Gordon Gekko, um amoral e no entanto moralista profeta do capitalismo, convencido de que esta ideologia é a panaceia geral do mundo, o cataclismo financeiro que nos adoece hoje é entrevisto de forma quase sobrenatural. Oliver Stone é o cronista, por excelência, da moderna história americana, e do espírito nacional dos EUA. Um patriota inquisitivo, como o próprio se gosta de intitular.


Há, no entanto, outras três títulos maiores no colossal período da sua carreira (entre 1986 e 1995) onde fez um punhado de obras-primas que passam ao lado dos três clássicos acima referidos.Duas excepções surgem: "The doors" é um biopic razoável com uma excelente interpretação lá dentro; e "Natural born killers" é uma obra bruta, experimental e desafiante do ponto de vista das ideias, mas com uma desorientação visual nada comum no realizador, e que acaba por afectar um produto final com tanta coisa boa (os actores deste filme, usando o over-acting como instrumento natural e óbvio, são uma coisinha tão boa que vale a pena, apesar de tudo). Tudo o resto é maravilha; e com naturalidade sobressaem três obras que espelham não só o clássico traço de denúncia presente no cinema de Oliver Stone, como também um avassalador poder técnico para condensar informação que reduziria muitos argumentistas a destroços criativos.



"Salvador", de 1986, esteve durante muito tempo no armazém de um estúdio, mas com o sucesso de "Platoon", a sua estreia tornou-se lógica; e é um excelente filme, acompanhando o trajecto de dois homens, um jornalista e um seu amigo, no conturbado ano de 1980, em El Salvador. Num país dominado por uma ditadura militar protegida pelos EUA, e à beira de uma guerra civil graças à acção de guerrilhas esquerdistas, é uma denúnica exposé através do olhar do jornalista, Richard Boyle, que procura no meio do conflito uma história para vender, e acaba por atravessar a linha que o separa da ditadura e dos revolucionários com um equilibrismo perigoso, pronto a cair. James Woods é intenso como Boyle, mas fica na memória um fotógrafo de guerra interpretado por John Savage, cuja vida e os conflitos bélicos se misturam. Um verdadeiro drogado, mais viciado no pó dos campos de batalha do que noutros mais característicos da América Latina. Embora desenvolva também uma história mais pessoal de Boyle, que inclui uma mulher por quem se apaixona e o seu filho, o ponto central no filme é a denúncia das atrocidades, a exposição do lado secreto da política externa norte-americana e uma certa ideia ingénua dos salvadorenhos, e por arrasto todos os povos a viver as dores de parto do pós-colonialismo, como tendo uma vida perfeita se ao menos não houvesse ingerências.


"Nixon", realizado 11 anos depois, continua essa reflexão sobre a alma política norte-americana, não só na sua relação com o mundo, mas acima de tudo na relação que mantém com ela mesmo, e com a memória e esperanças dos norte-americanos. Tenta ser, ao mesmo tempo, uma biografia ponderada e equilibrada (em certos pontos, talvez demasiado) de Richard Nixon, umas das mais vilanizadas, e controversas figuras da histórias dos EUA. Um homem cujo ódio por si mesmo conseguia ser maior do que aqueles que os outros lhe tinham. Anthony Hopkins é portentoso ao subverter todas as expectativas de imitação que existem nos biopics: apesar de não se parecer fisicamente com Nixon, ele é-o, soa a ele, desempenha-o e mergulha-nos na complexidade que só os grandes vilões possuem. O facto de a figura do presidente ser, em simultâneo, uma das mais bem sucedidas na sua política e uma das mais desgraçadas no seu legado confunde-o com a própria América, o país onde o desequilíbrio entre a sua promessa fundacional e a sua existência prática serão das mais assimétricas no planeta. O filme não funciona totalmente como o esperado (conhecendo a tendência de Stone para perseguir teorias da conspiração e a história escondida da América, fica-se com a sensação de que se passou ao lado de uma enorme oportunidade de festa, mesmo que Watergate, a Baía dos Porcos, oligarcas texanos e o assassinato de Kennedy sejam mencionados ao longo do filme), mas Stone está mais à procura de Shakespeare do que de si mesmo; e isso acaba por dar os seus frutos. Ond "JFK", por exemplo, será um filme para chocar e enraivecer, "Nixon" é mais fascinante e uma obra que pretende ser lida de diversas maneiras, nas leituras várias que faz da História.


No entanto, na minha opinião, nenhum filme de Stone mostra o seu poder quanto "JFK", uma obra prodigiosa em todos os aspectos possíveis. A começar pela subversão. Uma regra não escrita do guionismo diz-nos que um bom filme deve ter 90% de acção e 10% de exposição. "JFK" não só subverte esta regra, como é bem sucedido gloriosamente, ainda por cima como thriller. Não escondo que é dos meus filmes preferidos, e considero-o, tecnicamente, o filme mais perfeito que já vi, mesmo sendo de 1991: usa mais de vinte tipos de filmes diferentes, 15 câmaras a filmar diferentes velocidades, e consegue enfiar várias vezes o Rossio na rua da Betesga, ao sobrepor 3 espaços temporais numa mesma cena. Usando a subjectividade do nosso pensamento, com o cruzamento de imagens de eventos referidos em diálogos no exacto momento que são trazidos à acção, aumenta o impacto imagético, e sobre põe palavra, imagem, som e, o que é raro, memória de uma forma única. Assisto a "JFK" duas vezes por ano, no mínimo, e nunca deixo de me surpreender com cada pormenor que descubro e com a imponência de uma obra de três horas e meia, em que passadas duas estamos no início de um julgamento e mesmo assim, o espectador não se cansa e quer mais. E as interpretações,mesmo que fugazes, todas perfeitas? A banda sonora de John Williams, uma das suas mais subvalorizadas? O crescendo de gritos em Dealey Plaza, que culmina num coro que clama pela alma perdida dos EUA? Um parágrafo não chega para pôr em palavras o puro poderio brutal de JFK, e a ausência de palavras obriga a que as imagens falem por si.



Não sei o que se passou com Oliver Stone desde o seu último verdadeiro grande filme, "Nixon". "Any given sunday" tem momentos de grande impacto, daqueles que se esperam do que foi, numa certa altura, um dos mais fascinantes cineastas norte-americanos. Continuou a experimentar géneros, a cumprir projectos longamente acalentados e a ceder ocasionalmente a oportunidades fáceis de ganhar dinheiro, permitindo a a estúdios explorar os seus sucessos e a sua própria fama de provocador político. No entanto, embora adormecido, não creio que Stone esteja morto artisticamente. A estreia, na próxima semana, de uma série documental que produz e realiza, "The untold story of the United States of America" pode ser a prova disso. Este é, afinal, o mais romântico cronista político dos Estados Unidos da América. truculento, polemista e gritando contra o seu próprio país as vezes suficientes para nos provar que o ama verdadeiramente.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

"Skyfall"


James Bond é um ícone de uma religião chamada cinema. Nessa função, tem desempenhado um papel mitológico e simbólico de muitos desejos que os espectadores projectam na sua figura máscula, e no entanto, clássica, enquanto passeia a pistola, a verve e o corpinho por paisagens exóticas e locais que mesmo deste mundo, parecem extraterrestres. Pelo estatuto de símbolo, foi-lhe negado, durante quarenta anos, existir como personagem tridimensional, salvo excepções. "On her majesty's secret service", onde Bond casa, e vê a mulher morrer à sua frente, é um exemplo; "Licence to kill" é um filme Bond mais duro, e com um Timothy Dalton a ensaiar a dureza, brutalidade e emoção que Craig envergaria orgulhosamente no século XXI; e "Goldeneye" marca o momento em que a saga toma uma dimensão política estranha, quando aborda, mesmo que superficialmente, o papel dos espiões e o preço para a alma que o seu serviço implica. Não é exactamente John le Carré, mas dentro daquilo que estávamos habituados a ver na série Bond, era uma novidade. Não que a superficialidade tivesse algo de errado. Foi assim que "Cubby" Brocolli e Harry Saltzman conceberam a sua criação cinematográfica, embora que leia Ian Fleming saiba que bem que o escritor tinha uma ideia bem mais cínica e negra daquilo que James Bond era: um duro, misógino, amoral agente secreto.



O panorama mudou com a estreia de "Casino Royale", em 2006. Daniel Craig pegou ao serviço como o espião britânico e o tom mudou rapidamente. Não há engenhocas, piadinhas, Moneypenny, diabruras fora deste mundo. Na primeira grande cena de acção do filme, assistimos a dez minutinhos que arrumam com o Bond de Craig, que chega esgotado ao final, desgrenhado, arranhado, suado, sangrento Acabaram-se a noção de faz de conta, vilões com mandíbulas de aço, Roger Moore a correr sobre crocodilos num pântano.A credibilidade faz a sua entrada neste universo mítico e irreal. Claro, dentro da credibilidade que pode existir no universo do cinema de acção. Craig traz um Bond duro, que Dalton chegou a ensaiar, mas só pode encontrar um paralelo no cinismo inerente à interpretação de Sean Connery. O que "Casino Royale" diz, basicamente, é que este Bond tem problemas, traumas e complexos. Não é simplesmente um bebedor de martinis, femeeiro compulsivo, homem internacional de mistério, como Austin Powers o parodiou. Ele é alguém com quem nos podemos identificar. Num paralelo religioso, Craig assume um pouco o papel de Jesus no Novo Testamento: trouxe um deus para junto de nós, tornando-o homem.



"Quantum of solace" afastou-se um pouco deste caminho, entrando por tropelias desnecessárias. Mas eis que "Skyfall" regressa ao terreno pantanoso dentro de James Bond. Este é um filme que lida, afinal, com problemas que sempre passaram ao lado do personagem: a marcha da idade, o facto de ser órfão, a sua relação com autoridade, o sentido da sua carreira. Este tom melancólico não é notado logo à partida, visto que o filme abre logo tenso e movimentado, como estamos habituados em James Bond. No entanto, um evento charneira no final desta sequência marca todo o filme, e lança o personagem do agente britânico nua operação de soul searching que não é comum sequer no cinema de acção convencional. Literal e metaforicamente, James Bond regressa dos mortos, e tudo por causa daquela que se vem a revelar a principal Bond Girl do filme: M, a chefe de espionagem britânica desde "Goldeneye", assume sem grandes jogos de duplos sentidos, o papel maternal não só para Bond, mas sobretudo para o vilão Silva. Não se pode afirmar que "Skyfall" é uma luta entre Caim e Abel. Bond e Silva não são irmãos. São o produto de uma mesma educação, mas com escolhas de vida muito diferentes; e mesmo que estejamos habituados a ver James Bond como um homem independente e seguro de si, a sua lealdade nunca é posta em casa.



Silva é uma interpretação extravagante de Javier Bardem, condenada a ficar na galeria dos vilões Bond mais icónicos: o seu jeito levemente efeminado, o seu cabelo louro quase platinado, a sua fleuma e o seu sentido de humor, juntamente com a tendência para pregar que todos os bons vilões Bond possuem, fazem dele um personagem memorável. Bardem, que já tinha em carteira um vilão marcante, mas muito diferente em "No country for old men", pinta este homem como alguém que tem um problema mental extremamente sério, mas é ainda assim um psicopata extremamente funcionar: num mundo onde a espionagem como o MI6 a encara se tornou obsoleta e anacrónica, com o seu rasto de destruição e sacrifício humano desnecessário, reconhece que a virtualidade é o novo territórios das sombras. Através dos computadores e do seu mundo paralelo, Silva mostra como é possível subverter a ordem do mundo apenas clicando num teclado. É como se o mundo fosse tão frágil que não é preciso uma octana de explosões para fazê-lo desabar. James Bond, muito mais carnal e físico, é exactamente o oposto. Ou seja, o duo perfeito de antagonistas, que sendo moldados da mesma forma, representam ideias e espíritos muito diferentes: virtual/real; matar a mãe/proteger a mãe; egoísmo/sacrifício.



A intimidade de Bond é exposta num maior grau do que nunca no terceiro acto, que se desenrola na Escócia. Sem querer estragar as surpresas para os fãs da saga, é agradável que se mantenha algum mistério acerca da figura bondiana (elemento essencial para o seu sucesso), mesmo que se revelem alguns dos seus segredos. Não sei se podemos mesmo chamar de segredos, visto que apenas um pequeno número de espectadores terá pensado em factos tão simples como a origem de James Bond, a sua infância e aquilo que o tornou no homem em que viemos a conhecê-lo. Daniel Craig continua a sua candidatura a destronar Sean Connery no panteão da série, surgindo curtido pela carga do emprego que escolheu: a exaustão, o cansaço da morte, a pressão de manter uma fachada e de corresponder a expectativas. Na sua jornada de ressurreição, este filme parece desenrolar-se depois de James Bond ter cumprido todas as outras missões anteriores de uma assentada. A ida à Escócia, e a escolha de um local bem específico para montar o confronto final, é apenas a conclusão simples do percurso de Bond: para seguir em frente, é preciso dar alguns passos atrás e se for necessário, destruirmo-nos para nos voltarmos a reconstruir. Um Bond fragmentado? Um conceito psicológico que parece descabido neste universo; mas a prova de que neste filme se tenta algo de diferente; e melhor que tudo é que sai bem, como se quer.



Sam Mendes pegou na direcção e trouxe logo alguns dos seus colaboradores habituais. Thomas Newman não se desvia muito da impressão musical com que David Arnold tem marcado o seu período como compositor da saga. Roger Deakins, no entanto, é a contratação superlativa deste filme. Apesar de ser um dos melhores directores de fotografia do cinema actual, nunca tinha tentado um filme deste género. O que lhe posso pedir é que vote mais vezes. De longe o filme com melhor direcção de fotografia de toda a série, é uma beleza de planos e um jogo quase brincalhão de paleta de cores. Uma cena de acção em particular, em Xangai, é toda ela andar a brincar à escondidas atrás de neons; e fica na memória uma entrada em grande num casino de Macau. Este é o primeiro filme Bond de que me lembro em que há toda uma série de imagens e cenas que ficam na retina pelo seu puro poder individual, e não pela espectacularidade de acção ou coolness de James Bond. A culpa disto é, claro, de Sam Mendes. Não é um reconhecido visualista. No entanto, a sua cinematografia sempre se preocupou em dar aos seus filmes um aspecto imagético único. Antes de se tornar amigo d Deakins, trabalha com Conrad L. Hall, outro nome lendário do cinema na área da imagem. Nota-se que mesmo nas grandes set-pieces do filme, há um cuidado em separá-las visualmente entre si, como maneira de transmitir um estado de espírito e projectá-lo no nosso subconsciente. O grande final na Escócia é disso exemplo. Mendes parece estar até mais preocupado com estados de espírito do que  com o estado da explosões. É isso que torna "Skyfall" tão interessante como filme. No terreno da acção, não o acho superior e "Casino Royale", por exemplo. Mas como visita guiada à dramaturgia do mundo da espionagem segundo Ian Fleming, é vastamente superior a todos os outros filmes da série.



O filme é tão bom que até me esqueci da fraca música de Adele.  É daquelas tão insossas que nem sequer consegue estragar o que seja. Passa mesmo por um pormenor de rodapé perante duas horas e meia de excelência. seja na história, nas interpretações (e nem referi Ralph Fiennes, calmamente britânico até aos ossos; Albert Finney, a ecoar "Get Carter" décadas depois; ou Naomie Harris e Ben Winshaw, novo e irreverente sangue no MI6, marcando simbolicamente o tal fim de uma era que já referi) ou nos ambientes. Este é um raro Bond que pode, perfeitamente, passar por filme sério. Não há como negar que Jason Bourne obrigou James Bond a subir a parada. Mas nenhum agente secreto criado pela ficção norte-americana se pode comparar ao produto de supremo bom gosto fabricado pelo britânicos. Um homem que não anda a correr sem sentido, e que sabem bem quem é, e o que faz. Alguém cuja formação não se limitou a disparar e lutar, mas envolveu aprendizagem cultural e uma boa dose de espírito. Um homem completo. Com Daniel Craig, este homem ganhou uma alma. Sem nunca deixar de ser Bond.

James Bond.


sábado, 27 de outubro de 2012

"Hard boiled"




Não há maneira de exagerar o impacto de John Woo na história do cinema de acção, e não só: Tarantino não teria uma carreira no cinema se não fosse Woo. O realizador de Hong Kong elevou um género conhecido por ser despachado e directo a uma arte, juntando a dureza e falta de elegância das armas de fogo com a graciosidade e sentido estético de pura dança tradicional do género de acção oriental. De facto, o ritmo e mise en scéne empregado nos seus filmes podiam facilmente caber no estilo wuxia (muito popular na China, que mistura artes marciais tradicionais e bailado, e que foi trazido para o Oriente, juntamente com outras técnicas e marcas estilísticas de Woo, pelo manos Wachowski em "Matrix"), com as suas cenas trepidantes coreografadas, cinéticas, prolongadas e em crescendo. Os gangsters e polícias dos seus filmes correspondem aos mestres e vilões de artes marciais que se degladiam com pistolas no lugar de espadas.



Boa parte do público ocidental conhecerá o seu trabalho através de "Face off", o brilhante jogo de máscaras com Nicholas Cage e John Travolta (dois reis do over-acting a trabalhar com um realizador over the top) e "Mission impossible 2", o panfleto que tentou entregar o Noble da Medicina por perfeição física a Tom Cruise. No entanto, o melhor do seu cinema explodiu em Hong Kong; e se "The killer" é a obra mais emblemática de Woo, o pináculo do seu poder transfiguira-se "Hard boiled", que por reunir os dois melhores actores chineses dos últimos 20 anos, será um pouco como o "Heat" oriental. Chow Yun-Fat  e Tony Leung (um espantoso actor que não fez o cross-over para o Ocidente, e merece-o tanto como nós o merecemos) interpretam um polícia e um criminoso, respectivamente, A intriga gira em torno de uma vingança, dois chefes criminosos com graus morais muito diferentes e uma operação da força policial de Hong Kong para desmantelar tráfico de armas através de um informador e de toneladas de rosas brancas. Tudo isto é, claro, um pretexto para acção furiosa e um estudo superficial sobre o male bonding engtre um polícia e um bandido, um ponto central na trama de vários filmes de Woo. Assim como os gangsters beneficiaram do estilo do realizador noutros filmes, aqui são os polícias, encimados por Tequila, o duro entre duros, que saem bem vistos. O realismo é um pormenor aqui. O primeiro tiroteio do filme, num casa de chã, deixa mais de 30 cadáveres pelo caminho, mas tudo é feito com um tal nível que o exagero parece fazer parte do programa. Se Woo usasse o realismo, haveria queixas. Acontece quase uma subversão das expectativas: de modo a ser genial, tudo tem de ser irreal. Compreendo, em certa medida, porque é que o sonho do chinês sempre foi realizar um musical: tal como nos seus filmes, é um género que se presta a desligar do real de quando em vez, tornado ordenado e planeado o movimento, de modo a traduzir para o espectador o efeito de um sopro. Mas enquanto que nos estilo musical surge uma brisa, o cinema de Woo é a época de furacões mais estrondosa do Extremo Oriente.



O estardalhaço atinge o seu cume numa das mais espantosas sequências da história do cinema: um tiroteio dentro de um hospital que dura uns cinquenta minutos, e simplesmente não abranda. Pelo meio há que evacuar bébés (ecoando os problemas em assentar de Tequila, mas apenas o suficiente para não nos sentirmos envergonhados pelo gozo que temos com a pura e simples acção) e gente graúda, e os capangas do vilão nunca mais acabam. No entanto, há tempo e espaço para questões sobre identidade, moral e, estamos afinal num filme chinês, honra. O personagem de Tony, o bandido que afinal não é, debate-se com o lado da lei ao qual pertence, e em certo momentos, há a noção de que não falta muito até que dê um tiro em si mesmo. Este estado de espírito é o que força Tequila, o polícia, a encarar uma outra forma de cumprir a lei que se afaste da sua, incorrigível e irreverente. É também por isso que os filmes de Woo se tornaram bem sucedidos na cativação do público masculino: porque falam de problemas que os homens sentem como seus, ainda que não arranhando muito a superície. Qualquer homem entende a linguagem da testsoterona, principalmente quando esta esconde um outro tipo de alfabeto que nenhuma mulher pode compreender.

Assistam, e deliciem-se com delírio a sério. Para começarem a enquadrar realizadores que acham
 "originais"; e já agora, para contemplar um dos long takes mais badalados de toda a história do cinema."Hard

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Review relâmpago: "Looper"



Rian Johnson, muito pela calada, tem-se tornado num daqueles realizadores a que é preciso prestar atenção pela qualidade da sua até agora curta obra. "Brick" é o que a gente sabe (um film noir moderno com uma codificação tem própria que desvendá-lo é tarefa que traria júbilo a David Lynch) e "The brothers Bloom" traz alegria, ginástica e muita pinta ao estilo "caper", com reviravoltas na história de uma dupla de irmãos intrujões que parece ter sido realizado com um sentido de estilo bizarro que foge completamente a esse género, acrescentando-lhe um tipo de mentalidade só possível de ver no cinema independente. Não se pode acusar Rian Johnson de não ter intenções de agradar a um público mais alargado: "The brothers bloom" tem uma intriga cativante, mas Johnson não tem culpa de a sua imaginação ser, por vezes, mais rebelde do que o caminho que procura trilhar.

"Looper"pode marcar esse rito de passagem que tão bom realizador já atravessou. O filme desenrola um novelo que cruza duas versões com 30 anos de diferença do mesmo personagem, chamado Joe, num espaço temporal simultâneo. Este é um looper, do título, cuja profissão consiste em assassinar pessoas enviadas do futuro e que surgem à sua frente. O looper só tem de disparar, sem fazer perguntas. No entanto, quando o Joe futuro aparece ao Joe presente nessa condição, seguem-se as complicações óbvias para que um filme exista.
O realizador, que também escreve o argumento, cria inteligentemente (e também, acredito, por falta de recursos) um futuro que não difere muito do nosso, e não aliena, assim, um público menos aberto à ficção científica que dá as cambalhotas do filme. Uma estrutura de viagens do tempo é sempre muito complicado de gerir, pois permite facilmente buracos no argumento. Johnson salta logo isto, colocando na boca do personagens algo como "São viagens no tempo. Nem vamos explicar isto, que faz doer cabeça e ficamos aqui a fazer desenhos a tarde toda", e segue em frente; de facto, as regras são estabelecidas desde cedo e permitem não só ao realizador controlar a sua própria besta, como ao espectador entender o que se passa sem grande problema. Alguma dessas regras, como uma que envolve causa/efeito de feridas físicas entre os "eu" presente e futuro são expostas com grande imaginação e sem discursos técnicos. O filme torna-se ágil e simples de acompanhar no desenrolar da sua história.

Esta, no entanto, envolve temas que são complexos, e o principal parece ser o poder da escolha vs o destino. A maneira como um pode influenciar o outro opõe as duas versões da mesma pessoa, que por isso mesmo até podem ser visto como outras completamente diferentes. O Joe futuro pode ser apenas uma de muitas versões possíveis para o Joe presente, que ao contemplar-se a si mesmo, e ao relato que traz dos tempos vindouros que escreveu para si mesmo, não pode deixar de pensar onde a sua vida o leva. Johnson coloca o Joe presente a aprender francês para nos fazer acreditar que este tem realmente planos para o dia em que a sua vida como looper acabar, mas fica sempre a ideia de que este sofre de um mal de vivre qualquer que o impede de ver mais em frente. Talvez seja por isso que esta aparição do futuro o confronta mais com o seu presente do que outra coisa. O Joe futuro parece decidido a conduzir o do presente a uma felicidade que este sabe que existirá, ainda que o segundo não a tenha visto. O Joe mais velho não é necessariamente mais inteligente, embora sinta mais na pele a dor do que tem de fazer (e a missão que o traz ao presente não é pêra doce).

O que eleva este filme é, precisamente, o retrato que faz do seu mundo e a maneira como lhe encaixa as personagens. A razão pela qual certos actores aceitam receber menos para trabalhar com Johnson é, precisamente, porque este sabe criar bons papéis e escrever diálogo que fica no ouvido. Joseph Gordon Levitt interpreta o Joe com quem nos identificamos primeiramente como alguém a quem a vida vai passando ao lado e que luta, porque começou, precisamente, como um órfão abandonado que cresceu sozinho, e só se tornou alguém quando alguém lhe deu uma alma para a mão. esse alguém é o seu chefe (Jeff Daniels, a encher o ecrã por poucos minutos). Levitt tem, ao longo do filme, de aprender as lições morais e sentimentais que a sua versão mais velha demorou 30 anos a entender, e é na sua relação com Sara (uma dura Emily Blunt) e o filho desta que o consegue. Embora o papel do filho desta seja revelado desde cedo, o terceiro acto cresce com os segredos guardados por Sara e que precipitam o filme, e a missão do Joe mais velho. Bruce Willis interpreta-o como alguém ao mesmo tempo dorido e exasperado (com boas razões para isso), mas tão imperfeito que se torna compreensível. Ecoa alguns dos seus personagens passados, como o do filme "12 macacos", cuja intriga central não difere muito desta.

O que resulta disto é um raro filme de ficção científica que mistura ideias, sentimentos e acção sem que nenhuma atrapalha e outra Johnson ensaia algumas excelentes sequências visuais (algumas envolvendo alguém que faz lembrar o Akira do filme homónimo). É raro encontrar-se hoje em dia uma obra deste género que junte tudo isto, mas ainda é possível, quando se juntam um autor inteligente e actores que criam uma ligação entre o público e um mundo muitas vezes dominada por leis de física e mecânica que parecem ter sido criadas para nos separar da acção. Aqui não. Fecha-se esse loop.